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Foto do escritorDawton Valentim

Você já viu um artigo de Linguística com 10 coautores?

Atualizado: 23 de abr. de 2022

Numa outra conversa que tivemos, vimos que gêneros textuais são relativamente estáveis, ou seja, eles mudam, mas mantendo um padrão mínimo de recorrência. Vimos também que eles medeiam práticas sociais e mudam, muitas vezes, justamente para acompanhar as práticas, que também mudam.


Mas será que um gênero pode ter diferenças “dentro dele mesmo”? Isto é, será que uma notícia escrita num jornal cearense vai ter o mesmo padrão de recorrências de uma notícia escrita num jornal amazonense? Existem variações intragenéricas, “dentro dos próprios gêneros”?


Pesquisas da Análise de Gêneros Textuais, um campo da Linguística Aplicada, têm percebido cada vez mais que, sim, variações no interior dos próprios gêneros não só existem como ficam mais evidentes em determinadas esferas de atividade humana. Seguindo o pensamento de Bakhtin, podemos associar gêneros a esferas da atividade humana ou, em outras palavras, a contextos em que eles são usados mais comumente. A petição e o alvará de soltura, por exemplo, tendem a ser mais comuns na esfera jurídica. Isso não quer dizer – e é importante que se diga – que esses gêneros só circularão nessa esfera. Trata-se de predominância.


Algumas esferas deixam as variações de gênero mais evidentes porque suas próprias práticas sociais mudam muito lentamente, de modo que poucas mudanças passam despercebidas. É o caso da esfera jurídica e da esfera acadêmica. Para o linguista Ken Hyland, a escrita (e, por extensão, os gêneros textuais próprios da esfera acadêmica) é a “força vital da academia científica”. É por meio dela que os cientistas se comunicam e se reconhecem como pesquisadores. Mas um artigo de Nutrição não é igual a um de Linguística, mesmo que ambas as áreas sejam acadêmicas, certo?


Ainda segundo Hyland, mas não só ele, a academia científica é formada por diferentes áreas disciplinares ou tribos, como chama Tony Becher. Cada área, por sua vez, desenvolve sua própria cultura disciplinar, que foi definida, na recente tese de Jorge Tércio Pacheco como:


“acervo de crenças e valores epistêmicos, conhecimentos teóricos e metodológicos e formas de interação adquiridas ao longo de sua construção histórica que orientam e, muitas vezes, regem as práticas sociais e discursivas de uma comunidade disciplinar.”

Em outras palavras…


A cultura disciplinar de uma comunidade disciplinar define, por meio de normas explícitas e implícitas, como suas práticas podem ocorrer e o que membros precisam fazer para serem considerados membros. É, então, por meio da cultura disciplinar que podemos compreender grande parte das variações entre exemplares de um mesmo gênero textual acadêmico. Cada área manifesta em sua escrita seu próprio conjunto de crenças, tradições, métodos, teorias e papéis sociais.


Foi considerando isso que Pacheco, na dissertação de mestrado, notou que a Nutrição tem um alto índice de coautoria no gênero artigo porque existem, na área…

  1. valorização da quantidade de publicações;

  2. envolvimento de múltiplos agentes para a realização de uma só pesquisa;

  3. taxonomia de coautoria, utilizada por alguns periódicos para discriminar a função de cada coautor;

  4. união de laboratórios para contornar limitações orçamentárias;

  5. distribuição de funções e contribuições, especialmente em pesquisas laboratoriais.

Já dá pra dizer por que a Linguística não tem artigos com 10 coautores? Porque a cultura disciplinar da área da Linguística (ainda) não compreende como aceitável ou compreensível colaborações tão extensas. Isso foi percebido por Raquel Costa, em 2015, em sua dissertação, que investigou o gênero artigo nas áreas de Linguística e Medicina.


Pesquisas mais recentes têm apontado que essa parece ser uma tendência de áreas mais próximas das ciências humanas e das ciências sociais, que veem o esforço intelectual/ teórico como solitário, individual, autoral, quase subjetivo. Mas essa é pauta pra outra conversa…


Referências


COSTA, Raquel Leite Sabóia. Culturas disciplinares e artigos acadêmicos experimentais: um estudo comparativo da descrição sociorretórica. 2015. 243f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2015.

HYLAND, Ken. Disciplinary discourse: social interactions in academic writing. Singapura: Pearson Education Limited, 2000.

PACHECO, Jorge Tércio Soares. O artigo acadêmico na cultura disciplinar da área de Nutrição: uma investigação sociorretórica. 2016. 202f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplica) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2016.

PACHECO, Jorger Tércio Soares. Uma análise comparativa entre culturas disciplinares da grande área da saúde: semelhanças e diferenças sociorretóricas em artigos acadêmicos originais. 2020. 395f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Universidade Estaduadl do Ceará, Fortaleza, 2020.

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